29 de jul. de 2007

Coração sangrando e boca sorrindo

199 morreram no acidente da TAM



Na posse de Nelson Jobim, Lula, Waldir Pires e Juiniti Saito
morreram de rir




Quinta-feira, dia 26, fiz meu primeiro vôo depois do acidente da TAM em Congonhas. Embarquei pontualmente num turboélice ATR 42 da Pantanal para Presidente Prudente. Foi interessante embarcar num avião a hélices num aeroporto quase vazio. Me senti nos ano s 50. Bom, mas o que eu queria contar aqui foi o que senti ao comprar O Globo. Na capa, na notícia sobre a posse de Nelson Jobim para o Ministério da Defesa, a partir do presidente Lula, todos os personagens sorriam, muito divertidos. Desculpem mas eu não estou mais em idade nem com paciência para ficar tapando o sol com peneira. A verdade, meus amigos, é que a risada do Lula me fez refletir sobre se seu coração “sangra” de fato, diante de um típico drama pequeno burguês como a queda de um avião. Ele, que vive se ufanando de ter vindo de Garanhuns trepado na carroceria de um caminhão, estará mesmo com o “coração sangrando” pela morte das cerca de duzentas pessoas na tragédia com o avião da TAM ou o conceito sentimentalóide que pautou sua fala sobre o caso terá sido apenas mais uma “contribuição” de marqueteiro, como o Fome Zero e o PAC? A meu modo de ver, o Lula me pareceu muito mais presente, verdadeiro, autêntico, na risada, nas piadinhas e nos comentários de mau gosto sobre o medo de avião. O discurso sobre medo de avião nada tem a ver com as pessoas que perderam seus amigos e parentes no vôo; o discurso foi dirigido, como sempre faz Lula, para o povão do programa bolsa-família, que só conhece avião por fotografia. Gente que, igualzinha ao Lula no comentário, também morre de medo de avião. Só nós mesmos, de classe média para cima, é que ficamos chocados com as referências do presidente sobre entregar a alma a Deus ao embarcar num avião. Ele não está falando conosco. Ele está reduzindo o acontecimento a uma evidência, a uma grande probabilidade, a uma confirmação dos receios das pessoas mais simples e mais ignorantes - sua massa de eleitores - sobre o mistério de voar. E, com isso, desviando o foco da discussão, pelo menos ao nível desse povo, das questões relativas à incompetência gerencial da aviação brasileira. É isso e apenas isso o que interessa a Lula: não sacrificar sob nenhuma justificativa seu patrimônio eleitoral e dane-se a burguesia! Para tanto, ele é capaz de emitir comentários esdrúxulos, inconvenientes e reveladores de uma insensibilidade patética à dor alheia. Quanto aos outros sorridentes nas fotos da reportagem - o próprio Jobim, inclusive, que se deu ao direito a uma espécie de piada (“aceitei o convite porque minha mulher me disse para aceitar”) -, são todos produtos da ilha da fantasia chamada Brasília, aonde os problemas brasileiros só chegam como abacaxis e aborrecimentos incompatíveis com a qualidade de vida pessoal e funcional que seus cargos potencialmente proporcionam. Por que, por exemplo, deixaria de sorrir, quase gargalhar, o ministro da aeronáutica, Juniti Saito? O que é uma risada no meio da solenidade de demissão de um ministro por incompetência e da posse emergencial de outro durante uma crise que deixou duzentos mortos e centenas de famílias enlutadas, para quem condecorou a turminha da Anac três dias depois do desastre? Quem é capaz disso acha graça até de fratura exposta. Por que deixaria de rir, também, Waldir Pires? Anestesiado e imobilizado por um processo regular e longo de auto-destruição moral, por que não permitir-se, enfim, ativar alguns poucos músculos da face para uma expressão derradeira e simbólica de seu descompasso existencial? Enfim, é muito fácil rir em Brasília, espécie de casa grande no meio dessa grande senzala chamada Brasil. Como ocorria nas casas grandes, onde viviam os senhores e as senhoras de escravos, ali se tricota, se dá risada, se fuma charutos, se faz gestos obscenos dirigidos aos “de fora”, estudam-se frases de efeito para enganar os outros, vive-se o melhor dos faz-de-contas... Aos familiares dos mortos da TAM resta aguardar a garimpagem dos restos dos seus no meio dos escombros e, quando solicitados, dar um pouco de sangue para a identificação de algum laço genético com pedaços de carne carbonizada. Acho que Lula, Jobim, Pires e Saito nunca tiveram que doar sangue para tentar identificar algum laço genético com pedaços de carne carbonizada. Há quem diga que depois dessa experiência você não consegue mais sorrir.

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